A indústria do cinema é tradicionalmente conhecida pelo alto custo das produções, pelo aparato tecnológico envolvido, softwares de edição, montagem, captação e pela grandeza da estrutura que há por trás das câmeras. Fazer um filme com qualidade, conteúdo e técnica é um grande desafio com o qual nem sempre é fácil de arcar, seja pela questão financeira, seja pela questão operacional.

Mas e se fosse possível fazer cinema de qualidade, digital, aberto, em software e hardware livres, buscando romper as amarras que existem com as grandes fornecedoras desse tipo de material? Parece loucura, mas há algum tempo cineastas tem experimentado nesse campo. Dois exemplos disso são os filmes “Floresta Vermelha” e “Olhar Contestado”.

florestavermelha_posterh01O projeto Floresta Vermelha nasceu com o intuito de produzir um curta, com roteiro, captação, edição e making of feitos inteiramente em softwares e hardware livres. Segundo Flávio Soares, diretor e roteirista do filme, o desafio maior era criar uma comunidade que não existia, uma mistura de cinema com software livre.

A câmera utilizada nas gravações do projeto Floresta Vermelha foi uma Elphel 353, a mesma utilizada pelo Google para a captura das imagens do Google Street View (serviço de visualização de ruas da empresa). A idéia de usar essa câmera para gravação de cinema digital é antiga em fóruns de discussões open source. A empresa responsável realizou um processo de seleção, o programa Elphel Development Camera Pool, em que emprestaria um protótipo da câmera para gravação em troca de auxílio no desenvolvimento e documentação do protótipo. “Através da comunidade Apertus (link: https://www.apertus.org/), aconteceu a adaptação da câmera para o cinema digital. Nosso objetivo era fazer um filme dessa maneira, com técnica e em alta definição”, afirma Fábio.

As pessoas que trabalharam no projeto atuaram de forma voluntária e os custos de operação foram bancados através de um financiamento colaborativo. Por meio do Catarse, o projeto Floresta Vermelha arrecadou R$ 8 mil e o restante dos custos foi coberto graças a oficinas ministradas pelos membros da equipe, que compartilharam conhecimento em troca de arrecadação de fundos. “As oficinas eram em cima do interesse de quem nos contatava”, explica Fábio.

A primeira parte do projeto consistiu na filmagem de um mini-curta, intitulado “Cada sorriso é um flash”. O objetivo era testar a câmera e ver quais seriam as primeiras dificuldades encontradas. “Fizemos o mini-curta porque o filme não podia dar errado, foi um teste. Não era uma opção montar todo o filme, trazer as pessoas e acontecer algo com o qual não pudéssemos lidar ou que a câmera não fosse funcionar”, apontou Flávio. Segundo ele, surgiram problemas técnicos, como com o HD da câmera, que esquentava muito, assim como a falta de um bom feedback da câmera para quem estava na produção.

Ainda assim, a equipe não desanimou e preparou-se para encarar os desafios. Era necessário um fluxo de trabalho montado e pronto para que a equipe pudesse gravar com a Elphel em RAW e montar a sequência do filme no Linux, em softwares abertos de edição. Para Flávio, o importante é que a resolução dos problemas era feita pela própria equipe e cada solução encontrada era divulgada para que várias pessoas pudessem utilizá-la, gerando conhecimento livre, que poderia ser empregado por todos. “Uma parte do projeto consistia justamente nisso: dedicação de tempo para desenvolvimento de ferramentas, plugins e técnicas de edição”.

O objetivo foi disponibilizar toda essa informação gerada para que ela pudesse ser utilizada por outros entusiastas do cinema digital com ferramentas livres. “O projeto foi construído de uma maneira em que ele contribuísse o máximo possível, disponibilizando todas essas ferramentas em código aberto. O Floresta Vermelha é a faceta do cinema digital e multimídia”, aponta Flávio.

Equipe e repercussão

Flávio afirma que já durante a produção do roteiro tinha algumas pessoas em mente para trabalhar tanto em frente às câmeras, quanto nos bastidores. Embora algumas pessoas já tivessem alguma relação com software livre, a maioria dos envolvidos ainda não tinha familiaridade com esse tipo de plataforma. No entanto, o que marca a qualidade do filme está na diversidade artística dos envolvidos. A equipe tinha as mais diversas formações na área do cinema e foram escolhidas pelo trabalho que já desempenhavam antes do filme.

Para Flávio, o Floresta Vermelha chegou mais longe do que ele achou que chegaria. “O Floresta cresceu muito, juntou uma equipe ótima, que tinha sua própria marca. Parte da identidade das pessoas tinha que estar presente no filme e a marca delas está presente no figurino, na arte, no vídeo.” Além disso, o projeto gerou muito código aberto, livre para quem precisar, que surgiu por demanda da própria edição e produção do projeto.

Contestado, experiência paranaense pioneira em cinema livre

cartazOlharContestado_webNo Paraná também houve ao menos uma experiência recente com cinema livre. A iniciativa foi o documentário “Olhar Contestado”, com direção de Fabianne Balvedi e roteiro de Fernando Severo. O filme retrata a questão da Guerra do Contestado, na região sul do Brasil, cuja posse era disputada pelos estados do Paraná e Santa Catarina. Foi a maior guerra civil camponesa da história do Brasil.

Nesse sentido, o filme aborda as questões da madeireira Lumber, dos caboclos da região e do fotógrafo Claro Jansson, profissional estabelecido na região que documentou o período. “A prerrogativa do filme é o código aberto. Passar uma mensagem através do meio. O intuito não era fazer algo que fosse interferir com a mensagem”, disse Fabianne Balvedi, diretora do filme.

Fabianne é entusiasta do software e mídias livres e membro do Estúdio Livre, um ambiente colaborativo que tem por objetivo a formação de espaços reais e virtuais que estimulem e permitam a produção, a distribuição e o desenvolvimento de mídias livres. Além disso, é professora de linguagem audiovisual na PUC/PR. O projeto desenvolvido com “Olhar Contestado” teve como meta fomentar a cultura livre nas produções cinematográficas brasileiras. O filme é fruto de quatro anos de trabalho e a experiência serviu também para analisar as falhas e fazer reparos para melhorar o desempenho de produções futuras.

Serviço

Pra quem tiver mais interesse nos trâmites técnicos realizados através do Floresta Vermelha, os detalhes de todo o processo estão no site do projeto: http://florestavermelha.org/

 

Além disso, lá estão disponíveis o filme para download, o making of, e também a trilha sonora original.

Maiores informações e o filme Olhar Contestado estão disponíveis no sítio www.contestado.org.